quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Vivendo e aprendendo a viver rápido

A cena engraçada dos clichés é serem irritantemente verdadeiros. Hoje ia a caminho do trabalho e um pensamento banal buzinava-me na cabeça: o cérebro humano é uma coisa espantosa. Não era por acaso que o cliché não me largava as ideias. Eu estava espantado com a capacidade de adaptação do cérebro à velocidade. O mais curioso deve-se ao facto de isto se ter passado indo eu tão devagar. Não, juro, fora de brincadeiras, ia mesmo devagar. E digo-vos, isso não é coisa fácil na Hayabusalândia.

Há uma razão para a minha pacata velocidade e não foi ter apanhado um cagaço monumental. É a desgraçada da transmissão. Começou a avisar-me que está prestes a render a alma ao criador. Para quem não sabe (eu não sabia) a transmissão secundária é composta por 3 peças: pinhão de ataque, cremalheira e corrente. Em última análise é o que faz a mota andar porque, simplisticamente, é o que liga o motor à roda. Com o tempo (± 20 mil kms nas minhas mãos), na Hayabusa estas três pecitas começaram a sofrer duma enfermidade a que se atribui o adjectivo “ovalizada”. O pinhão de ataque e a cremalheira – rodas dentadas tipo as das bicicletas – ficam com os dentes curvos, deformados pelo calor e forças a que são sujeitos, enquanto que a corrente fica – falha-me uma descrição mais técnica – completamente fodida. A corrente começa a bater porque parece que está larga. Na verdade os elos estão deformados. Numas partes está esticada, e noutras completamente larga, tornando impossível a afinação. Também significa que os O’rings estão fracos, pelo que a resistência e flexibilidade da corrente estão seriamente comprometidas. Na prática, ela começa a dizer-te que está mal de saúde, soltando “ais” e “uis” ao bater em todo lado. Isso só quer dizer uma coisa – Troca-me.

A enfermidade da Busa obrigou-me a andar meeeeeeeeeeesmo devagarito, com arranques muuuuito lentos, e sem passar dos 90/100 km/h. Quase que já adormeci!, perdoem-me a heresia Ó passarada da Hayabusalândia!, mas andar na Busa assim é uma seca, sobretudo porque um tipo sabe do que ela é capaz.
Isto obrigou-me a reprogramar o cérebro. Por exemplo, se vou a serpentear entre filas tenho de me lembrar que não posso acelerar dos 40 aos 120 em dois segundos para me safar do trânsito. Passar mais devagar entre dois carros significa que facilmente posso ficar entalado. O melhor é ficar atrás. As ultrapassagens são mais lentas, o que dá mais azo a levar com um enlatado distraído, de telemóvel na mão, porque de repente se lembrou que precisa mesmo de ir para a faixa da esquerda, ainda que não haja carros à frente dele. Fico atrás, não posso acelerar à bruta, não vá a corrente partir-se. A sensação #1 na Hayabusalândia – abrir o punho alarvemente à saída das curvas, com a traseira a dar-lhe no slide – teve de ser castrada à naifada. Aqueles impulsos de “ia a 120 mas a mosca mordeu-me e agora vou a 240” também tiveram de levar tratamento idêntico e com recurso ao colete de forças. E assim lá fui anestesiando as ideias para poupar a transmissão enquanto não é trocada.

Andava nestes preparos, sem nada de interessante para fazer em cima da besta, quando comecei a perceber como, ao longo destes 3 anos e meio de Hayabusalândia, a minha percepção de velocidade tinha sido alterada. Essa noção começa a ser adquirida assim que um gajo põe a mão pela primeira vez na Hayabusalândia, isto é, pôr-lhe a mão no acelerador. (Quando o vendedor da Suzuki me disse para não passar das 6 mil rotações durante a rodagem, eu pensei “Lá vou apanhar 1200 kms de seca!”, até descobrir que em 6ª às 6 mil rotações vamos a 180 km/h!) Mas agora isso ficou ainda mais claro. Foi muito estranho andar ao lado dos carros ou ficar atrás deles. Vê-los aproximarem-se por trás, em vez de pela frente, dava-me cá um formigueiro na mão direita!... e a par disso reparei que tudo se passava a velocidades bem razoáveis: 80, 100, 120, 140 km/h. Mais do que razoáveis, estão no limite do legal. E, no entanto, tinha a sensação de ir a pastar uma tartaruga.

Lembrei-me das viagens para o Algarve pela A2. Um tipo farta-se rapidamente das rectas. Porque depressa o cérebro se habitua à velocidade. A primeira vez que andas a 180 parece que vais à velocidade da luz. Na segunda vez tens a mesma sensação, mas à 5ª já parece normal. Então passas a ir a 220 e a história repete-se. Então passas a ir a 250, e depois a 280, e depois vais ao que a mota der. Não é que deixe de ser giro, mas é um facto que a habituação à velocidade acontece.
Gradualmente, o condutor habitua-se a andar cada vez mais rápido. Em recta, em curva, em AE, em estradas sinuosas, entre o trânsito, até nas ruelas ao pé de casa. Não foi nem uma nem duas que me apanhei na rotunda do Marquês a pensar “se calhar vais um bocado deitado!” e, olhando para o conta-kms, ver que ia algures ali pelos 140. A vida na Hayabusalândia é assim mesmo, e só a auto-disciplina é que pode ter mão nisso. Ou isso, ou vender a mota.

Não me venham com merdas do género – Eu sou muito calmo a conduzir –. Deve estar para nascer o gajo(a) que senta o cú numa Hayabusa e nunca na vida excede estupidamente os limites de velocidade, uma e outra vez. A prová-lo está a razão mais apontada por quem abandona a Hayabusalândia – Estava na hora de acalmar um bocado –.
Uma boa velocidade de cruzeiro em estrada aberta é 200. A mota vai segura, o motor não se esforça, e a deslocação de ar contra o condutor aguenta o peso do tronco (para mim que peso 105 kgs). Há muita estabilidade a direito, em curva, a passar buracos, e muita margem para fazer tudo isto muito mais depressa e ainda mantendo a calma. Tudo se passa no reino da tranquilidade.

Mind you! Em todos os momentos que passo na Hayabusalândia faço questão de ter consciência da velocidade a que vou. Seja qual for o trajecto, no fim dele, se me perguntarem, geralmente sei dizer a velocidade que dei em cada sítio por onde passei. Numa mota destas tem de ser assim, não há margem para erros. Um gajo tem de ir consciente do que está a fazer em cada segundo. Se eu não souber dizer é porque os neurónios estão a gripar com excesso de trabalho, nesse caso o melhor é deixar a mota em casa.

Ou seja, um tipo não se habitua à velocidade porque está distraído, ou abstraído da realidade. É um processo consciente. O condutor sentindo-se confortável e confiante a determinada velocidade, sente de seguida segurança para ir um pouco mais rápido. E progressivamente vai aumentando a sua velocidade. O cérebro parece não ter limite para processar cada vez mais depressa as imagens que recebe dos olhos, guardá-las e usá-las como conhecimento adquirido para aumentar a rapidez das reacções do corpo, em situações como pilotar uma máquina a alta velocidade. É apenas um processo de habituação. Curiosamente, apenas a limitação física do corpo aguentar as forças “Gs” é que impõe um limite à pessoa, o que, obviamente, nunca chega a acontecer numa mota. Umas pessoas têm mais capacidade do que outras e se calhar é isso que explica existirem campeões do mundo em desportos motorizados, com diferenças de milésimos de segundo. Ainda mais espantoso é que permite ao piloto ir mais longe na utilização das capacidades do cérebro e entrar no campo da intuição, no sentido em que tem uma visão daquilo que vai fazer ainda antes de acontecer. Um piloto em pista (pode ser de motas, carros, aviões, barcos o que for), gradualmente, torna-se mais rápido quanto maior é o conhecimento que adquire dela. Mais voltas, mais conhecimento. Ele vai armazenando nas ideias imagens da pista. E então vai sendo cada vez mais rápido, até ao ponto de não precisar de fixar o olhar nos pontos de marcação para conduzir. Simplesmente combina o conhecimento adquirido com um olhar rápido e um campo de visão o mais alargado possível, e actua em conformidade, em milésimos de segundo.

A este respeito, os pilotos do Red Bull Air Race devem ser a crème de la crème. Não sei se já viste alguma prova destes maníacos da aviação. Mas aqueles gajos devem ser dementes da cabeça para se porem a fazer aquelas manobras. Eles têm provavelmente as máquinas mais rápidas do mundo no que diz respeito ao binómio velocidade/capacidade de manobra. Os aviões têm ±350cv, andam na casa dos +400 km/h e são concebidos para suportar forças de até 15 Gs. Em prova, nas “curvas” maradas que fazem, eles atingem frequentemente os +9 Gs, mais do que nos caças militares e sem fatos “anti-G”. Eles não têm tempo de ver os obstáculos que são obrigados a contornar e pensar em contorná-los. Têm de fazer as duas coisas em simultâneo, a 400km/h, usando do conhecimento adquirido da pista e, é claro, da experiência. Mas, pondo os ases das pilotagens de parte e salvaguardando a devida proporção das coisas, o mesmo acontece com todos nós que andamos na estrada, ou mesmo em pista, ainda que amadoramente.

Entretanto, lá vou eu pacatamente a cem na minha Busa, aborrecido das ideias, mais um carro passa e eu a viajar nos pensamentos em vez de me concentrar na estrada. Recordo-me das curvas da serra no Algarve. Alarvemente depressa, completamente escondido atrás o ecrã da Busa, para me proteger do vento. Vou atrás do meu cunhado. A Ninja 12 dele, endiabrada, vai deixando traços de borracha no alcatrão, conforme ele inclina a mota para a curva à esquerda. Um calhau salta da roda traseira dele na minha direcção, vejo a trajectória em arco da pedra, sei que me vai acertar no braço e não tenho tempo de me desviar. Ui! Não tiro os olhos da mota dele. – Raios o maluco do gajo vai todo deitado! – e então lembro-me que vou atrás dele à mesma velocidade. O alcatrão não tem buracos nem manchas de óleo. Vou entre as linhas brancas da estrada, na boa trajectória, não há estradas secundárias a entroncar no nosso caminho, nem veículos parados nas bermas, oliveiras à direita, à esquerda ribanceira de calhau, no sentido contrário vem uma carrinha Opel comercial que nos manda faroladas, obviamente assustado com a nossa velocidade, e esta curva já foi; com a delicadeza de uma bailarina e a precisão de um cirurgião o ninjabroder manda a peida para fora da mota, lado direito, e deita-se todo para entrar na contra-curva, mais um traço de borracha no alcatrão, eu faço o mesmo, mas com a delicadeza de um hipopótamo, a 3ª bate no redline, quarta, abro o punho todo, num esgar vejo um borrão vermelho no conta-kms entre nos 220/240 e tudo se passa em câmara lenta.