quinta-feira, 12 de julho de 2007

Shit happens, ou foi burrice?

Abre punho, ABRE PUNHO!, a vozinha manda a mão obedece. Os quatro carburadores suaves que nem seda da XJR fazem a sua magia e saio da curva que nem um míssil. Wooooooooow!! Uns metros de recta, a 2ª bate no redline. O som do 1300cc a cagar rotações põe-me os pelos da nuca todos eriçados. Espeto-lhe a terceira e abro punho sem misericórdia, quarta; travão a fundo, curva à esquerda, desato a metralhar mudanças para baixo. Uf...!, correu bem, entrei suave na curva. Sou um espectáculo! ABRE PUNHO!, a vozinha manda a mão obedece. OOOOPS!, vou direitinho à berma, disparado que nem uma bala, a mota abre a trajectória demasiado cedo! Ai Ai Ai!, os olhos ficam fixos no último pedacinho de alcatrão. Ao lado, berma mais que muito estreita de terra, seguida de ribanceira... se a mota sai do alcatrão estou fodido, com todas as letras.

Azar? Burrice? Há diferença? Nunca pensaste no assunto?
Eu acho que há uma diferença grande, e acredito que perceber essa diferença pode ajudar a evitar asneiradas, como essa aí atrás. Por outras palavras, há acidentes que nós podemos impedir que aconteçam.

Shit happens é o caso do gajo da CB 750 que ia à noite para casa. Estava uma chuva parva, aquela chuva miúda que deixa as ruas mais escorregadias que vaselina na menina da menina. O tipo ia nas calmas, cai o vermelho, ele abranda e trava com calma até parar. Mas a rua era a descer, e ele teve o azar de pôr o pé esquerdo em cima de uma tampa de esgoto. O pé não escorregou, o pé saltou, toda a perna saltou que nem uma bailarina e, tendo perdido o apoio, a mota tombou sobre a esquerda mais rápido do que tu consegues dizer “ai!”. Nada a fazer.

Já uma burrice fez o gajo que comprou uma Ninja ZX10R e foi para a serra fazer curvas. A meio de uma curva que normalmente se faz a 60 km/h, ele devia ir no mínimo a uns 100, e todo deitado quase a raspar com o joelho no chão. Até aí tudo bem porque a mota faz isso na boa, mas então ele teve uma ideia infeliz “E se abrir o punho todo agora? Deve dar uma ganda sensação!”, e vai de abrir o punho todo na Ninja em 2ª. Asneira.

A mota tem +180cv, em 2ª com as rotações lá em cima, acelerar que nem um alarve fez a traseira perder tracção, patinar e fugir em slide numa reacção violenta. A frente começou a fugir também, mas ele não caiu logo. Quando a traseira foge em andamento, a tendência é o chassis corrigir a posição da mota, para ficar direita, com as duas rodas alinhadas. Mas por causa do excesso de potencia transmitido à roda traseira, a mota deu uma chicotada para o lado oposto, a traseira continua a fugir, agora para o outro lado. A grande sensação que ele experimentou foi ser cuspido da mota.

Apesar de qualquer um dos dois poder acontecer a qualquer condutor, há uma diferença óbvia entre os dois casos. Se no primeiro caso o tipo não pode evitar o acidente, o segundo tipo se fosse mais esclarecido das ideias não teria feito o que fez. Enquanto que há azares que não dá para evitar, as burrices só acontecem se nós as fizermos. É como sexo sem preservativo.

Nop, não estou a dizer que devemos ir para a estrada com um preservativo enfiado na cabeça. É mais ir com um preservativo enfiado nas ideias. Se podemos evitar alguns acidentes é quase uma obrigação fazermos tudo para que eles não aconteçam. Só que nestes exemplos, tal como em tudo na vida, para não fazer errado é preciso antes aprender a fazer certo. E, sabendo que as motas têm performances que ultrapassam em muito o limite do absurdo, isso implica aprender muita coisa.

As escolas de condução, onde tiramos a carta, não ensinam muito mais do que “o punho da direita é que te vai dar as boas sensações”. O que quer dizer que na realidade um tipo aprende a andar de mota é na estrada a fazer kms. Oooops! Mas espera lá!?, então como é que um gajo sabe distinguir as burrices a não fazer? Não sabe, é a resposta, só aprende com a experiência. O que é mau quando a experiência são erros que se pagam caro. Se há coisas que são uma questão de bom senso, há outras nunca vamos aprender sem que “alguém” nos ensine. O acidente do gajo da 10 é uma mistura de descuido e desconhecimento. Provavelmente, ele fez aquilo centenas de vezes na 600cc que teve antes e a coisa correu bem, só que o resultado porque a mota era muito diferente do que ele estava habituado. Foi incauto.

Portanto, cabe a nós mesmos investir tempo e dedicação a aprender. Quanto mais kms fizeres melhor. Desenvolve-se a condução, ganha-se confiança e fica-se a conhecer bem a mota, o que é tão importante como o Cristiano Ronaldo ficar horas a treinar fintas malucas depois de toda a gente ter acabado o treino.

Mas, sendo importante, não basta. Com a orientação de alguém que tem muito conhecimento de motas e experiência podes aprender mais e melhor. Por exemplo, fazer muitos kms na estrada atrás de condutores mais experientes. Ir com atenção à maneira como conduzem, pedir-lhes dicas, fazer perguntas.
Fazer cursos de condução avançada, com professores e programas competentes. Fazer track days, não com o objectivo de conseguir curvar tão inclinado que até as carenagens raspam no alcatrão, mas sim com o objectivo de aprender a conduzir com segurança e fluidez em todas as situações, e com a garantia que o estás a fazer com um mínimo de segurança e controlo.

Se eu hoje consigo orientar-me com o mínimo de decência em cima duma mota é graças ao meu cunhado. Tive sorte. Ele é um gajo com uns 20 anos de experiência de motas, e teve a paciência de ir comigo para a serra. Fazia-me sinais a mostrar onde e como travar para fazer uma curva, como colocar o corpo, quantas mudanças devia baixar e a melhor trajectória. Depois ele ia atrás de mim e dizia-me o que ele achava que eu fazia bem e o que fazia mal. Papei muitas horas de mota atrás dele a vê-lo a dominar a demoníaca Ninja 12. Quando conseguia ir atrás dele!

Pelas mesmas razões, ver o Motogp além de divertido é educativo. Ninguém no mundo sabe pilotar melhor uma mota do que os deuses dos mundiais de motociclismo, sejam do asfalto ou do fora de estrada. Pode-se observar a linguagem corporal deles, a posição do tronco, a forma como agarram os punhos, como põem os pés, as trajectórias que fazem, onde e como travam, e o comportamento das motas em situações limite. Pensar sobre o que se viu, em vez de ir para estrada tentar fazer parecido.

Infelizmente, aqui na tugalândia fazer um track day custa horrores de dinheiro, há falta de pistas, e de gente competente a ensinar. Quanto a cursos há o Action Team, e a escola do Miguel Praia que eu não faço ideia se são bons ou não, mas que me deixam muito feliz por existirem, pelo menos já é alguma coisa que temos a hipótese de fazer. Fora isso temos ali ao lado as pistas espanholas.


Em Inglaterra, por exemplo, existem dezenas de cursos avançados. E os motards ingleses tenham o nível de experiência que tiverem papam esses cursos que nem tremoços com cervejas. Até jornalistas como o pessoal da Superbike Magazine, por exemplo, que são condutores desde o médio, tão hábil como eu e tu, até ao jornalista-piloto-de-testes que raspa o cotovelo no alcatrão em todas as curvas que faz. Todos frequentam cursos ou workshops de condução avançada, e fazem com tanta frequência quanto possível track days. Eles fazem isto para se tornarem melhores condutores e de caminho divertem-se.

Se calhar, se as motas não dessem 300 km/h com tanta facilidade, esta questão nem se punha. Mas hoje até uma scooter consegue fazer curvar numa rotunda a 80! As motas andam muito, dão grandes sensações a quem as conduz, dão vontade de puxar por elas. E isso é razão mais do que suficiente para cada condutor perceber que tem de aprender umas coisitas antes de ir curtir. E o que é mais importante é que este raciocínio aplica-se qualquer que seja o teu nível de condução.

Eu tenho dias em que me sinto o campeão do asfalto. Mas eu achar que sou muito bom condutor é tão relevante como o Sócrates achar que é bom primeiro-ministro. Não leva a lado nenhum, com a diferença que eu pago caro os erros que fizer na mota. E por isso tento adoptar uma certa dose de humildade, pensar que tenho sempre muito a aprender, seja qual for o meu nível de condução. Quer estejas no nível “Pneu quadrado” ainda com pouca confiança para curvar, ou no nível “limpa-a-goma-toda-e-deixa-a-borracha-esfarelada”, algures no intermédio ou muito mais à frente, há sempre uma margem de aprendizagem, e há sempre alguém que é melhor condutor que tu a não ser que te chames Valentino Rossi.

Portanto, perceber a diferença entre “shit happens” e “foi burrice” distingue o motard sapiens sapiens do motard acéfalus. Eles existem dos dois. Pertencer a uma ou outra categoria não determina em absoluto a ocorrência ou não de acidentes, mas se calhar ajudar a aumentar as probabilidades da coisa correr bem na estrada.

De volta à minha burrice. Lá vou eu na XJR disparado para a ribanceira. Consigo ver a cena em câmara lenta, e a quantidade absurda de cagadas que fiz num intervalo de tempo tão curto. Ia a olhar a frente do nariz da mota, em vez de ir a olhar para o ponto da estrada mais afastado que conseguia ver. Se o tivesse feito teria visto antecipadamente que no final a curva fechava mais, mas como não vi, não ajustei nem a trajectória nem a velocidade de acordo.
Segundo, podia ter deitado mais a mota, para fechar a minha trajectória, em vez de manter a inclinação que levava, que eu achava que já era muita. Na verdade, regra geral, é possível deitar a mota sempre um pouco mais, mesmo quando te vais a borrar pelas pernas abaixo porque achas que já vais muito deitado.

A XJR devia ter uns 10 mil kms, era a minha primeira mota portanto eu próprio tinha 10 mil kms. Acima de tudo o que aconteceu foi que o meu cérebro vendo a possibilidade do acidente não soube reagir, por falta conhecimento e de experiência. A mota abriu a trajectória até ao último milímetro de alcatrão. E então aconteceu que não saí da estrada. O acidente não se deu, não sei como. Provavelmente porque o meu anjo da guarda ia à pendura e deu uma mãozinha.

6 comentários:

abbocath disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
abbocath disse...

Eh pá!Ler esta "crónica" deu-me que pensar agora que me inicio nas duas rodas com mais cilindrada!O que li foi uma grande lição sem sombra de dúvida! E o que dizes sobre o preço dos cursos é bem verdade: caros e escassos!
Boas curvas!
www.abbocath.blogspot.com

Gonçalo Viana disse...

Ora aí está um bom tema para desenvolver outra crónica: como escolher uma mota.
Eu iniciei-me logo com uma 1300cc. Não é o mais recomendável, e eu sabia disso. Mas também acreditava no meu bom senso e capacidade de me controlar. Posso dizer que foi uma excelente maneira de aprender a conduzir motas. Posso dizer por exemplo que um motor com mais binário e menos rotativo (maior cc) ajudou-me bastante. Podia por exemplo meter a 5ª a 40 km/h que a mota andava na boa sem soluções, e não estava sempre a pedir rotações (como uma 600cc por ex) e isso ajuda. Qto aos cavalos eles estavam lá mas é a tal coisa, o punho roda nos dois sentidos, e apenas aquilo que o condutor quer. Tive alguns momentos tal como o exemplo que referi, mas isso teve mais a ver com a falta de experiência em duas rodas do que com a cilindrada da mota. Aliás como o prova também o exemplo do gajo da ninja 10. Acima de tudo, seja qual for a escolha que uma pessoa faça, o mais importante parece-me que é o bom senso. O resto virá naturalmente daí. Enfim... pelo menos esta é a experiêcia que tive.
Obrigado pelo comentário.
abr e boas curvas
parabéns pelo abbocath.blogspot.com

manobro12 disse...

Texto 5 estrelas. Conduzes como Escreves... para quando uma nova voltinha pela serra? Tás à espera da nova 1000 ou ainda vamos com a 12? mano

Pedro Sá disse...

Muitos Parabéns pelo texto.É bem verdade o que escreveste. As motas hoje em dia andam muito e para além de saber andar nelas, é preciso ter muita cabeça antes de pegar numa. A minha experiência em motas de maior cilindrada é pouca. Neste momento estou mais virado para as motas antigas. Mas no meio disto tudo, não são só os motociclistas que têm responsabilidade na estrada. Os automobilistas nem sempre respeitam as duas rodas. Mas isto é um mal já cronico nas nossas estradas. É por isso, que na minha opinião, o maior motivo de tantos acidentes nas nossas estrada, é a falta de civismo e a falta de respeito por quem circula na estrada. Espero que um dia isto se altere.
Mais um vez parabens pelo blogue.

Pedro Sá- Pontos de vista

Rui Pereira disse...

Tive conhecimento deste blog através da revista Motociclismo, e de facto, mereceu bem o destaque...
Os meus parabéns pelos escritos, algo longos :) mas muito interessantes!
Ah, Hayabusa, essa ave de rapina - grande máquina!
Boas curvas (na Serra)!
Rui Pereira
motasemetal.blogspot.com